sábado, 23 de maio de 2009

Notas sobre a queda do -g- em mirandês (2)




II. A QUEDA DO –G- LATINO


(...)

3. Em mirandês

As situações referidas acima em relação ao português verificam-se também em relação ao mirandês. É importante salientar que estes casos são de efectiva queda do g latino, ao contrário dos casos que referimos mais abaixo em que a palavra latina que esteve na origem da palavra actual não era grafada com g mas com c. Apesar de também nos primeiros casos apresentar especificidades, é sobretudo em relação aos segundos que elas se verificam.



Casos de queda de –g- latino

latim ------- português ----------- mirandês:
plaga ------- praia --------------------praia,
sagu -------- saio ---------------------saio
legale--------leial, lial ----------------leal
regale------- reial, rial ---------------reial, rial
litigare ------lideiar, lidiar (arc.)--- lidar lhidar
ligare --------leiar, liar, ligar-------- liar, ligar
vagativu---- vadio --------------------badiu
ruga--------- rua ----------------------ruga, rua, rue
ego ----------eu----------------------- you

Notas:
i. Ruga, em certas aldeias e Miranda não cai o g.
ii. Regalengo aparece com esta forma em documentos medievais leoneses.
iii. You é uma forma especial que só existe em asturo-leonês.



Casos em que g latino (em todos os casos com valor de j) ora persiste, ora cai mas continua a conservar o som de i, que originariamente tinha:

latim...................... português............................ mirandês
regina- ...................reia ou raia (arc.) rainha....... reina
legere.................... ler.......................................... ler
legenda-................ lenda .....................................lhienda
vagina- ..................bainha ...................................baina
sigillu- ................... selo .......................................selo, sielho
digitu- ....................dedo ......................................dedo
magis ....................mais....................................... mais, más
corrigia- ................correia ....................................correia
sagitta- ..................seta ........................................seta
navigiu- .................navio .......................................nabiu
legitimu- ................lídimo ......................................legítimo
rugitu- ...................ruído .......................................rugido
cogitare ................cuidar ......................................cuidar
magistru- ............. mestre .....................................mestre
frigidu- ..................frio .......................................... friu
lege- .....................lei ........................................... lei
rege- ....................rei............................................ rei
Pelagiu- ...............Paio................................... ..... Pelaio, Paio
sartagine- ............sartãe ou sartã ........................sartian

Notas:
i. Nesta lista de palavras há a registar que o g não cai em legítimo, dado que não conheço que se use em mirandês a palavra lídimo.
ii. O g também não cai em rugido, talvez por seguir o verbo rugir, em que o g também não cai. Não me parece que a razão tenha a ver com a criação da palavra por via erudita, como sustenta José Joaquim Nunes: “Aquelas palavras em que o -g- se conserva foram introduzidas na língua em época provavelmente muito posterior, na sua maioria decerto por via erudita; é o que se vê em rugido, por exemplo, que coexiste com ruído, vagido, mugido, etc (ob. cit. 107)
iii. A palabra baina é de uso limitado às vagens de feijões e outras plantas e à expressão depreciativa “sós um baina”. Já em mirandês tenho ouvido dizer la bainha de las calças, la bainha de la spada, e bagina (orgão sexual feminino, que tem muitíssimas designações) formas que me parece terem vindo do português.



Outros casos em que o –g- latino pode cair em mirandês, mas não em português:

mirandês..............................latim
beiga, beia ............................veiga-
biga, bia ................................biga
bigor, bior .............................vigore-
ligar, liar, liar ........................ligāre
oubrigar, oubriar ..................obligāre
oubrigaçon, oubriaçon .........obligatione-
oubrigado, oubriado .............obligatu-
striga, stria .......................... striga-
figura, fiura ...........................figūra

Notas:
i. A queda do g em ligar já se verifica em alguns documentos do antigo galaico-português. A título de exemplo aponto a cantiga de Pero Meogo, Enas Verdes Ervas, em que aparecem as formas liei e liara. Em mirandês a queda extende-se a derivados como lieira e anliado. No entanto também é usada a forma com g.
ii. Veiga é um caso particular, na sua relação com o latim, sendo duvidosa a sua inclusão nesta lista. Com efeito, considera-se que vem do prerromano ibai (rio) com o sufixo –ko, -ka que indica pertença, terreno que pertence ao rio. Alvarez Maurin (1994, 215) documenta várias formas em documentos leoneses antigos (séx. X-XII): ueiga, ueequa, uaika, uaica, uayca, uayga, uagica, beica, uaiga, etc. A forma Beia corresponde a um topónimo de Águas Vivas, que as pessoas pronunciam sem g, facto que atesta bem a sua antiguidade.
iii. Manuela B. Ferreira (Limitrofia... cit., pp. 40, nota 12) refere que o g não cai em viga, porém essa queda verifica-se, pelo menos em Sendim. Mas já tenho ouvido bigota, com g, talvez por ser uma palavra recentemente entrada no vocabulário mirandês e a partir do português.
iv. O verbo oubrigar, na variedade sendinesa do mirandês, conjuga-se, em todos tempos, sem excepção, se g. Há, no entanto, o derivado oubrigado, apenas nos casos em que é usado como agradecimento formal, em que há oscilação entre a pronúncia com g e sem g, facto que se deve a influência dessa expressão portuguesa, que tem vindo a substituir a expressão mirandesa tradicional Dius bos l pague.
v. Stria, em mirandês, não deve ser confundida com a palavra portuguesa estria, relativa a sulco na pele.
vi. A palavra figura perde o g em Paradela, mas não em Sendim, onde mantem o g tal como os seus derivados.





III - A QUEDA DE –C- LATINO DEPOIS DE Ī

Há casos, os mais frequentes em mirandês, que nos aparecem como de queda do –g-, mas que são de queda de –c- latino, como já chamou a atenção J. Leite de Vasconcellos. O estudo isolado destes casos visa descobrir a regra que presidiu a aquela queda e, eventualmente, tentar ter uma ideia aproximada de quando se deu esse fenómeno.
Comecemos por uma lista de palavras simples, isto é, sem ter em conta todas as que delas são derivadas, tomando como elemento primeiro de evolução a palavra latina:

Mirandês ...........................Sendinês............................... Latim
amigado...............................amiado ................................. amicatu-
amigo...................................amio.......................................amicu-
antigo..................................antio........................................antiquu-
artigo...................................artio........................................articulu-
barriga.................................barria......................................barrica-
bexiga..................................bexia.......................................vesica-
biga......................................bia..........................................biga
bigor.....................................bior........................................vigore-
brigada.................................briada....................................apricata-
cantiga.................................cantia.....................................cantica-
cumigo.................................cumio.....................................cum mecu-
cunsigo................................cunsio....................................cum secu-
cuntigo.................................cuntio.....................................cum tecu-
derraigada............................derraiada...............................derradicata-
einemigo...............................einemio..................................inimicu-
estriga..................................stria........................................
fadiga...................................fadia.......................................fatica-
figo.......................................fio...........................................ficu-
figueira.................................fieira.......................................ficaria-
formiga.................................formia.....................................formica-
miga.....................................mia.........................................mica
Miguel, Miguelito .................Miel, Mialito
obrigar..................................oubriar...................................obligare
oubrigaçon...........................oubriaçon...............................obligatione-
obrigado...............................oubriado.................................oblogatu-
ourtiga..................................ourtia......................................urtica-
perdigon...............................perdion.................................. perdice+one-
perdigueiro...........................perdieiro................................ perdice+ariu-
postigo.................................postio......................................posticu-
rigueiro.................................rieiro.......................................rigatu-
rodriga.................................rodria
sartigalho............................sartialho..................................salti+gallu-
spiga...................................spia.........................................spica-
trigo.....................................trio..........................................triticu-
trigueira...............................trieira......................................triticu-+aria-
abrigar.................................abriar.....................................apricare
castigar...............................castiar....................................castigare
ligar.....................................liar..........................................ligare
beiga ..................................beia........................................veiga

Notas:
i. A análise destes casos mostra que a explicação para a queda do –g- só pode obter algum sucesso se partirmos das palavras latinas e não das palavras actuais com –g-. Basta comparar as formas do verbo cunseguir (consequĕre (cl. consequī), cunsigo, cunsiga, em que o –g- não cai, mas já cai no pronome pessoal (pouco usado) cunsigo (cum secu-).
ii. Partindo dos casos apresentados e apesar de a lista não ser completa (ver anexo) podemos formular a seguinte regra: dá-se crase de g, quando o c latino é precedido de ī (i longo).
iii. A regra formulada na nota anterior pode obter contraprova pela verificação de que não se dá essa crase, se o i for breve (ĭ). Vejamos alguns exemplos:

Mirandês...................... Sendinês............... Latim
achegar ........................achigar ................. ad + plĭcāre
chegar ..........................chigar ....................plĭcāre
acunchegar ..................acunchigar ............a + cum + plĭcāre
pregar (spetar)..............pregar....................plĭcāre
pregar(sermon) ............pregar....................praedĭcāre
pregador.......................pregaador..............praedicātore-
pico.............................. pico...................... (celta) beccus
eigual ...........................eigual................... āequăle-
ciguonha...................... cigunha................ cicōnĭa-
quemungar ................. quemungar........... comūnĭcāre

iv. Muitas das formas apontadas como de queda de g aparecen já em documentos leoneses medievais com a palatalização do c latino em g: Deradicauimus aparece em documento leonês de 946 (Alvarez Maurin, 1994: 359), de derradicare, antecedente do antigo derraigar; figares está documentada em 949 em documentos leoneses (Alvarez Maurin, 1994: 231), tal como ficares (950), ficcar (960) e figaria (980); a forma trigo já é documentada por Alvarez Maurin (1994: 261-2) em documento de 915.
v. O verbo ampregar apresenta algumas particularidades. O g cai na palavra ampregado, quando integrada na expressão mal ampriado (referida a alguém que não é merecedor de algo), usada em Sendim; em Malhadas já ouvi dizer a duas pessoas (Balbina Mendes e Duarte Martins) mal ambriado, expressão que também se usa com esta forma em Genísio. Porém, noutras acepções mais usuais, o g não cai nessas aldeias. Em Sendim há uma queda do g nas várias acepções da palavra, embora se tenha vindo a perder nalguns usos mais recentes, relativos ao emprego (trabalho). Ora a queda do g neste caso parece excepcionar a regra geral uma vez que o i latino é breve (implĭcāre). O caso deve ser visto com mais atenção, sobretudo porque noutras palavras com a mesma origem (chegar, aconchegar) não se verifica aquele fenómeno.
vi. Na palavra cântico (do latim cantĭcum) o c latino não cai nem palataliza em g (o i é breve), tudo indicando que a palavra se formou por via erudita. Mas o mesmo já não se verifica em cantiga, em que g cai, pelo menos em sendinês, o que nos faz presumir a sua origem num latim tardio cantīca. De notar que a palavra cântico não é mirandesa.
vii. Em mirandês não conheço a palavra fadiga, com o sentido que tem em português. Porém, em sendinês há a alcunha (retirada de apelido) Fadias (do latim fatīca) em que o g cai. Este facto faz-nos pensar que a regra da queda do g se interiorizou e continuou a verificar-se mesmo face a palavras portuguesa em que a regra acima enunciada se continuou a verificar. A não se assim, corresponder-lhe-ia em mirandês uma ditongação do i (ie), como veremos abaixo.
viii. Em documentos leoneses medievais aparecem as formas recaria (1013), regera (1068), rekera (1097), reigera (1098), reguera (1154). Alvarez Maurin (1994, 207). Segundo Garcia de Diego do latim rigare e Corominas (DCECH) do prerromano recu, talvez cruzado com o latim regar. Aqui a queda do g pode ser tardia. Mas atenção ao substantivo riego (no leonês antigo com o sentido de ribeiro, rigueiro, sentido que terá desaparecido nos nossos dias tanto no castelhano como no português, mas que em mirandês se mantém), com ditongo crescente, que, segundo Albarez Maurin (1994, 196), supõe uma base recu. De notar que o g não cai em rigare (regar).
ix. O g também não cai em ciconia (ciguonha). Alvarez Maurin (1994: 269) documenta ciguniola em 906 e cigonia em 944 em documentos leoneses, numa altura em que o c latino já se tinha convertido em g.
x. Embora apontemos o exemplo de quemungar, convém realçar que quemunicar vem do latim commūnĭcāre, onde não se coloca o problema ( o i é breve e a palavra é de origem erudita).
xi. Olga, Alvarez Maurin (1994, 210) defende que pode vir de um latim tardio olica, apresentando a forma orica de documento leonês de 1004 (DCECH, holgar). De notar que, neste caso, a palavra em mirandês tem ditongo crescente.

xii. No verbo dezir o g cai em todas as formas (dīco, is, ere, dixi, dictum)

digo ....................dio ......................dico (3ª p. sing. pres. ind.)
diga, digas(...)... dia, dias (...)........ dicam, dicas, dicat (...) (pres. conjuntivo)
diga ...................dia (3º p. sing. imperat.)

Repare-se na idêntica grafia entre dia (forma de dizer am sendinês) e dia (tempo de 24 h em português), mas a pronúncia é muito diferente. Igualmente deve notar-se que esta forma do imperativo não consta da Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa, pois ignorou que as formas de tratamento sendinesas eram na 3ª pessoa.
xiii. No verbo castigar o g cai em todas as formas (castīgo, as, āre, avi, atum)
O –g- cai em todas as formas sem excepção, em sendinês, nunca caindo em mirandês central. O mesmo se verifica em relação aos seus derivados: castio, castiador. Em asturiano a forma é castigar e o –g- nunca cai.
xiv. Traier é um caso especial (traho, is, trahere, traxi, tractum = arrastar):

trago(mirandês .....................traio(sendinês .............traho (latim)
traiga, traigas, traiga (...)...... traia, traias traia (...)... traham, trahas, trahat (latim)
..............................................traia (imperativo)

Diz Manuela B. Ferreira que neste caso não está em causa um fenómeno de queda do g., mas que tem a ver com a forma latina traho (de trahere). Já em trago (gole) e formas do verbo tragar (que os autores dizem ser de origem obscura, por ex. CUNHA, Antônio Geraldo da, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, ed. Nova Fronteira, 2ª ed. 1986, Rio de Janeiro), essa queda não se vrifica, ficando bem clara a distinção em sendinês, enquanto em mirandês as duas palavras são homónimas. Mas deve notar-se que em mirandês central apenas se mantem o –g- na forma trago, desaparecendo nas restantes pessoas do presente do indicativo. Já no presente do conjuntivo se mantem o –g- em todas as pessoas, caindo sempre em sendinês. Em asturiano o verbo é trayer. Em castelhano o verbo é traer.
xiv. Também não cai o g quando, em latim, o c é precedido de ditongo (sílaba longa por natureza) ou de e breve, casos em que há ditongação em mirandês (ditongo crescente):

Mirandês........................ Sendinês......................... Latim

ciego ............................... cigo ..................................cāecu-
griego ...............................grigo ................................ grāecu-

É de notar que, embora não haja ditongos crescentes em sendinês, ainda assim a arca da raiz latina se mantém, não caindo o g.




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